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Num piscar de Vida


Num piscar de Vida

Não sei quanto a vocês, mas para mim o primeiro sinal visível de que o Natal está prestes a bater em nossas portas acontece com o surgimento daquelas luzes que piscam intermitentemente, sendo expostas e vendidas no comércio dos bairros.

Aos poucos essa energia leve, festiva, em forma de fios e pequenas lâmpadas coloridas, vai tomando as fachadas, iluminado o interior das casas, e envolvendo árvores de Natal.

Sempre que montávamos a nossa na sala, papai reunia a família em torno dela para ilustrar algumas passagens sobre a origem desse ornamento festivo.

E como num ritual já conhecido, assim que acendia esse conjunto de luzes “pisca-pisca”, saudávamos com uma deliciosa salva de palmas a memória das três pessoas que, segundo papai, contribuíram para o surgimento desse fascinante ornamento luminoso.

Thomas Edison, o inventor da lâmpada, por ter criado em 1880 o primeiro fio de luz elétrica. Na época do Natal, exibiu sua invenção amarrando de forma criativa um conjunto de fios com lâmpadas luminosas do lado de fora do seu laboratório, para quem passasse pelo local pudesse apreciar a beleza do primeiro visor de luz elétrica.

Edward H. Johnson, amigo e sócio de Thomas Edison, ao lançar dois anos depois, no Natal de 1882, a primeira série de luzes elétricas, que iluminaram sua casa na Quinta Avenida, em Nova Iorque, instalando oitenta lâmpadas vermelhas, brancas e azuis em torno da sua árvore de Natal. Um must.

E Albert Sadacca que, sem nunca ter conhecido Thomas e Edward, criou as luzes elétricas e coloridas “pisca-pisca”, para iluminar sua árvore de Natal de uma forma diferente e inusitada.

Ainda lembro do olhar de papai, exalando brilho, enquanto encarava todos a baterem palmas, num misto de exaltação e felicidade. Bem no fundo de seus olhos, estava lá, instalada, a árvore de Natal e suas luzes a piscar.

Ah, papai, como não esquecer disso!

Apesar do clube que tanto amo se reservar na véspera e dia de Natal à quietude, em prol das famílias Vermelhinhas que festejam a chegada do menino Jesus no aconchego privado e familiar de seus lares, isso não significa que entre nossos associados não encontremos pessoas que tenham a mesma inquietude e sagacidade de Thomas, Edward, e Albert.

Entre algumas que conheço, pela convivência de anos, destaco pelo viés de minha memória afetiva duas passagens – uma delas, um marco para a nossa cidade; a outra, eternizada pelo porte da conquista dada ao nosso Vermelhinho.

As duas se relacionam pela questão das luzes natalinas. E se unem na figura do associado Edmundo Liviero Pezzoni.

Edmundo traz em sua bagagem de Vida histórias memoráveis, nutridas pela curiosidade e impetuosidade que o movem desde a infância.

E nessa toada, lá pelo início da década de setenta, num começo de Dezembro que revela noites tipicamente natalinas, Edmundo caminhava absorto pela região da Washington Luiz, repassando a lista de afazeres para aquele Natal que prometia, quando avistou algo que lhe fascinou, vindo do quintal da casa do ilustre Athiê Jorge Cury: uma bela árvore, ostentando luzes coloridas em seus galhos e ramos, e que deixavam ainda mais esplendoroso aquele clima em que a cidade mergulhava.

Decoração assim, só vista nas películas dos filmes da Metro Golden Mayer que eram exibidos nas sessões semanais de cinema do Clube Internacional de Regatas. Mas com tamanha vivacidade e magnitude, vista tão de perto, era a primeira vez.

Extasiado, Edmundo foi para casa, caminhando pela orla da praia. Quando virou a esquina da Rua Roberto Sandall, passando pela portaria do Edifício Âncora, não respondeu ao tradicional cumprimento do Sr. Euclides. Atravessou a rua em direção à portaria do Edifício Timão – onde morava – subiu em estado perplexo no elevador, mantendo aquela imagem deslumbrante ainda projetada em seu écran mental.

Passados alguns dias, Edmundo surgiu na portaria do Timão com um grande pacote. Dentro dele, um emaranhado de fios, soquetes, e uma caixa repleta de lâmpadas pequenas, das cores vermelha, amarela, azul, verde, e branca.

Horas depois, as pessoas que passavam pela rua viam Edmundo, auxiliado pelo zelador do seu prédio, no alto de uma escada, ajeitando os fios com soquetes e lâmpadas no entorno da copa e tronco da árvore que decorava o prédio. Ainda sobrou um tanto para distribuir pelos arbustos como se formassem pequenas colinas luminosas e coloridas na paisagem.

A noite chegou e Edmundo transformou aquele pequeno cenário em um deslumbre que contagiou a todos que passavam, num misto de surpresa e fascinação.

Uma pequena convenção de zeladores e síndicos então se formou em frente ao Timão, todos ouvindo atentamente o que Edmundo sugeriu: que cada prédio fizesse o mesmo. O custo de aquisição não era elevado, e o benefício estava ali para todos verem, estampados nos rostos de adultos e crianças que olhavam maravilhados para a primeira decoração natalina luminosa de uma fachada de prédio na cidade de Santos.

Naquele Natal, nem todos os edifícios aderiram. Mas nos seguintes, a Rua Roberto Sandall, na qual inúmeros associados do Clube Internacional de Regatas residiam, passou a ser reconhecida como a mais bela e iluminada rua natalina de Santos.

A outra passagem que envolve o querido Edmundo desagua em uma das modalidades mais aguerridas e fascinantes, praticadas no Clube Internacional de Regatas: o hóquei sobre patins.

Uma modalidade com História grandiosa, poderosa, memorável. Para contá-la, reservo outro dia, outras crônicas.

As memórias que trago hoje tomo em partes emprestadas de Edmundo (as que se referem aos bastidores dessa passagem) e as minhas, fiel espectadora que fui de quase todos os eventos esportivos que aconteceram em nosso amado clube.

O fato é que Edmundo, formado em Educação Física, se alternava entre treinador e preparador físico do time de hóquei Vermelhinho. Dominava como ninguém a arte do preparo físico e, além de conhecer a parte tática da modalidade, sabia trabalhar o lado psicológico da equipe, o que criava laços de respeito, confiança e amizade entre ele, atletas e o restante da comissão técnica.

Entre tantos campeonatos conquistados pelo clube, com Edmundo cuidando do preparo físico dos atletas, um deles teve um sabor especial para o competente profissional: ele seria o técnico da equipe em um torneio internacional – uma espécie de campeonato sul-americano -, sediado no clube e com a presença de equipes poderosas, bases de suas respectivas seleções nacionais.

Como muitos torneios que aconteciam na época, ocorriam no sistema de chave única, todos jogando contra todos, onde quem conquistasse o maior número de pontos seria o campeão legítimo. Algo justo e raro de se ver hoje em dia.

Fizeram parte desse Torneio Sul-americano times expressivos e fortes, como o Clube Internacional de Regatas, os times argentinos do Huracán e do River Plate, que tinha acabado de fazer uma grandiosa turnê invicta pela Europa e estava extremamente preparado para esse torneio. E dois times chilenos: um deles, o Club Deportivo Huachipato, base da seleção chilena de hóquei.

Quis o destino que a última rodada do Torneio colocasse frente a frente o Clube Internacional de Regatas e o temido Club Deportivo Huachipato, os únicos times com chance de se tornar campeão.

A vantagem era do time chileno, que tinha um ponto à frente da máquina Vermelhinha. Mas isso não esmoreceu a garra da equipe, que se energizou com as últimas palavras da preleção de Edmundo à beira da quadra, segundos antes de se iniciar a finalíssima: era “ganhar ou ganhar”.

Duas questões me chamaram a atenção em todas as partidas disputadas pelo Internacional nesse Torneio. A primeira era a tensão acima da média que havia se instalado no banco de reservas do Internacional. A segunda: a ausência de um dos titulares absolutos da equipe, um defensor conhecido como “Lambreta”.

Tais questões confluíram em uníssono para o imponderável: uma semana antes do início do torneio, Lambreta estava com amigos no tradicional “Banho da Doroteia” quando se iniciou uma briga generalizada bem ao lado do grupo de amigos. Uma mão que passou ali, um pontapé que raspou acolá, a mão de Lambreta interceptou uma garrafada que tinha como destino a sua cabeça. Esse movimento, se o protegeu de ser atingido no crânio, não evitou o impacto em cheio da garrafa  em  sua mão, cortando o seu tendão. Um acidente grave que o levou a uma intervenção cirúrgica de emergência.

Com Lambreta literalmente cortado do time, surgiu inesperadamente uma dura perda para a equipe, que tinha pela frente cordilheiras a serem superadas.

O substituto de Lambreta era o ainda adolescente Sílvio, conhecido como “Marreco”, com apenas quinze anos de idade à época do Torneio.

Foi realmente um decisão difícil para Edmundo tomar. E muito questionada. Ainda antes da primeira partida, Veras, o antigo técnico da equipe invadiu o vestiário indignado, cobrando de Edmundo a decisão de colocar um adolescente inexperiente para gladiar com atletas extremamente talentosos e experientes.

– “Você tá louco… botar um moleque de quinze anos pra jogar, rapaz? Com essas feras que estão aí, vieram da Europa, tudo aí, seleção chilena, argentina…”

Mesmo com essas pressões – fator campo, perda de titular, substituto adolescente – a equipe do Clube Internacional de Regatas se mostrou aguerrida e em condições iguais aos seus opositores. Partida por partida.

Foi então que, para a surpresa daqueles que contestavam as decisões de Edmundo, o Vermelhinho chegou na última rodada com chances reais de ser campeão. Tinha pela frente o Huachipato, que jogava com a vantagem do empate para se sagrar campeão,

O embate seguiu tenso, equilibrado, durante toda a partida. Os times jogavam com certa cautela e respeito mútuo. Os chilenos procuravam a todo momento diminuir a velocidade da bola, cadenciando o jogo, diminuindo espaços, e pressionando fortemente a saída do time Vermelhinho.

A torcida, conformada e feliz com o vice-campeonato, aguardava a última volta do ponteiro para comemorar o feito, depois de tantos contratempos.

Faltando vinte e cinco segundos, jogo empatado, aconteceu uma paralisação de tempo, com a bola no ataque do Huachipato. Os chilenos começaram a se abraçar, não conseguindo mais segurar a alegria da conquista.

Edmundo reuniu a equipe à margem da quadra:

– “Alfredinho, você vai ficar no meio. Um cara vai te marcar, não te deixar sozinho. Vai ser três contra três. Três chilenos contra três nossos, lá atrás. Marreco, você vai disputar a bola com o chileno e vai roubar essa bola. Passa sem pensar pro Alfredinho. Aí, é contigo”.

E bateu a palma da mão no peito do Alfredinho.

Todos em posição, aguardavam a autorização do árbitro, a torcida de pé, ansiosa. Edmundo permaneceu sentado, com a mesma expressão que tinha estampada no rosto quando vislumbrou as luzes decorando a árvore da casa do saudoso Athiê Jorge Cury.

O juiz apitou, Marreco roubou a bola e rapidamente passou para Alfredinho, que estava no meio de campo marcado por um chileno.

Alfredinho bailou para um lado, para o outro, confundiu a marcação do chileno, a ponto de se livrar dele, e dali mesmo, do meio de campo, bateu forte na bola, como se nela colocasse toda a esperança dos torcedores ali presentes.

A bola seguiu como um cometa na direção da meta, passando entre o protetor de rosto e o ombro do goleiro chileno, que nada pôde fazer, a não ser ouvir o apito do juiz e a explosão da torcida que, extasiada, comemorou o impossível: o título conquistado, com um gol no último segundo de partida.

A arquibancada desceu para a quadra, os jogadores Vermelhinhos se misturaram à euforia dos torcedores, os atletas chilenos sem entender direito o que acabara de acontecer. Um dos atletas mais festejados, o talentoso adolescente Sílvio Marreco, foi eleito o melhor jogador do Torneio. Destaque de uma geração que traria títulos para o Clube Internacional de Regatas e para a Seleção Brasileira de Hóquei.

Em meio a todo esse frenesi, Edmundo Liviero Pezzoni se encaminhou para a meta adversária, desviando dos eufóricos torcedores e, ao chegar nela, se abaixou para ver algo. Infelizmente, com tantas pessoas na quadra, não pude ver o final de sua ação.

Já em Dezembro, com a Roberto Sandall devidamente ornamentada e iluminada, Edmundo descansava sentado em sua aconchegante sala, admirando de sua ampla janela de vidro o movimento da orla.

Após dar um suspiro, se voltou para a árvore de Natal decorada com bom gosto, recheada de bolas e iluminada pelo cordão de luzes “pisca-pisca”.

Com um sorriso jovial em seu rosto, Edmundo se levantou, caminhou até o pé da árvore, se abaixou até um pequena estrutura ali disposta em meio a embrulhos de presentes, e se levantou novamente, trazendo em sua mão uma pequena bola de cortiça prensada e borracha vulcanizada, com perímetro de vinte e cinco centímetros e com peso de 0,155 kg.

Ali, em sua mão, um dos melhores presentes que um piscar de Vida poderia lhe dar: a bola do gol do título, esquecida na quadra, mas agora sob seu poder. Mais do que um título, tal relíquia guardava todo o respeito, carinho e consideração que a Vida, naquele dia memorável, lhe sorriu!

Viva menino Jesus! Viva!

(Essa crônica é uma homenagem à família Vermelhinha Pezzoni)

 

MINIBIOGRAFIA CLUBÍSTICA – A História da família Pezzoni no C.I.R.

Enquanto trabalhou como lançador de impostos da Prefeitura de São Paulo, na década de 30, Edmundo Pezzoni Junior fazia da sua labuta um ode ao funcionalismo público. O reconhecimento de sua capacidade e profissionalismo foi a sua nomeação para a região de Santo Amaro, onde praticamente se tornou prefeito.

Aposentado aos 42 anos, adorava vir a Santos com a família, onde, além de um grupo de grandes amigos, tinha uma casa na Rua Carlos de Campos, distante duas quadras do Clube Internacional de Regatas.

Em 1954, Edmundo comprou um título familiar do clube e assim como ele, sua esposa Izita Liviero Pezzoni e seus filhos Hilton Liviero Pezzoni e Edmundo Liviero Pezzoni se tornaram sócios do Vermelhinho da Ponta da Praia.

Formou-se uma grande turma de amigos que se reuniam frequentemente nas dependências do clube. Turma essa que, nos famosos carnavais do Inter, fazia parte do Bloco dos Vermelhinhos, a sair visitando os clubes co-irmãos.

O filho Edmundo Liviero Pezzoni defendeu as cores do Inter como atleta, conquistando inúmeros títulos no tamboréu. Foi também preparador físico e técnico de hóquei do clube, onde manteve a tradição de levantar troféus de campeão. Edmundo casou-se com Dóris, também sócia do Clube Internacional de Regatas, e integrante da tradicional família Guedes.

Atualmente são sócios do clube: Hilton Liviero Pezzoni (sócio remido); Edmundo Liviero Pezzoni (sócio remido) e sua esposa Dóris; o filho Marcelo Guedes Pezzoni (atleta de hóquei do Inter), sua esposa Cristiane Camargo, e as filhas Marcela Luísa Camargo Gonçalves e Mariana Camargo Guedes Pezzoni (ambas praticaram patinação artística, participando dos belos eventos de fim de ano, tradicionalmente promovidos pela modalidade do clube).

Todos frequentam o Clube Internacional de Regatas, e nele desfrutam momentos de intensa alegria e comunhão com amigos e amigas.