Quatro de maio de 1903.
Essa data ficou preservada na memória afetiva de minha família, tantas vezes que foi ponto de partida para que meu bisavô Albino Jaime Pimenta Ribeiro, adepto da prática do Remo no Clube Internacional de Regatas, a resgatasse nos encontros familiares ou nas rodas de conversa, com seus seletos amigos.
O jeito de contar essas histórias era a sua característica marcante, da qual me recordo quando a saudade por ele desponta no mirante de minha nostalgia: seus olhos se iluminavam, transportando para o tempo real a sua narrativa, construindo pontes visuais para compartilhar imagens que habitavam seu écran mental.
Assim, posso quase afirmar que também participei daquele memorável início de maio, de sol tão radiante que logo após despontar no horizonte, já orientava várias embarcações que se dirigiram ao Paquetá.
Algumas delas, conduziam esportistas para assistirem a uma prova náutica que marcaria época no esporte de nossa cidade. Meu amado bisavô Albino era um deles. Mesmo amuado pelas fortes dores musculares na região lombar, que o impediram de participar dos páreos, trazia consigo secretas expectativas sobre o desenlace vitorioso de seus queridos amigos remadores.
Outras embarcações, transportando autoridades e convidados, seguiam mais atrás. Em uma delas, minha adorável bisavó Maria Esterlina Nascimento Ribeiro seguia, levando em seu colo minha querida avó Helena Pia Suplicy Ribeiro, na época com ternos sete anos.
Todos, ao chegar e já estabelecidos, ocuparam totalmente as arquibancadas de madeira e o palanque reservado para a comitiva das autoridades e personalidades, enquanto aguardavam com ansiedade pela chegada dos atletas Vermelhinhos, conhecidos em Santos como “Os Sonhadores de Bocaina”. Tal espera foi recompensada quando os reconheceram pelo uniforme oficial: camisa vermelha com âncora branca no peito, calções brancos, meias pretas, sapatos brancos com sola de borracha, cintos brancos, ligas pretas, e quepe branco e vermelho, com pequena pala vermelha e um botão vermelho no alto.
O amor e a dedicação desses atletas ao clube impregnavam cada ato, cada palavra que traçavam. Até nos mais simples detalhes, como o distintivo do Clube Internacional de Regatas, de autoria de David Ferreira; e a bandeira, de João Scott Hayden Barbosa.
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Exatamente às treze horas e cinquenta minutos, com a prova Lyra de Apollo, deu-se a largada do páreo para os atletas em seus Yoles – pequenos barcos de design nórdico, leves e alongados, com rascunho baixo, impulsionados por remos. A distância não era a das mais longas, mas o que causava dificuldades era a maré que, naquele momento, iniciava a mudança.
Quem se encontrava perto do local de chegada, já ia reconhecendo as Yoles, vindo à frente “Pery”, tendo como patrão J. Barreto e como tripulantes M. Martins e L. Carneiro que, ao receber a bandeirada, se colocava a uma distância ínfima do segundo colocado.
Este foi o primeiro páreo náutico da tarde.
Corridos outros páreos, chegou finalmente a prova “Vinte e Quatro de Maio”, a principal competição, em homenagem ao aniversário do Clube Internacional de Regatas, onde escaleres de seis remos participaram da derradeira corrida.
E lá estavam elas, alinhadas para deslizarem por mil e seiscentos metros. Todos os atletas concentrados, onde o único movimento que vinha de seus rostos eram as gotas de suor que escorriam pelas têmporas.
O sinal foi dado e todo aquele quadro que esboçava um sentimento de natureza morta, ganhou vigor e vida. Os escaleres “Guarany” e “Araty” entregaram-se a uma luta ferrenha para conquistar a mais desejada prova de destaque daquela tarde.
Os competidores eram todos músculos, mesmo sendo tostados pelo sol, que naquele dia se mostrou implacável; a determinação dos movimentos sincronizados ressaltava a entrega física dos remadores.
Foi quando um lampejo de magia revelou um fenômeno, quase que sobrenatural, a todos que ali estavam: o luminoso mar – recortado num rastro provocado pelo sol, que iniciava seu deitar de gigante no horizonte – transmutou os remos dos atletas em asas de prata; e as brumas, rasgadas pela pujança dos remos, em ondas de Luz.
Em meio a esse instante lúdico, a cadência dos competidores era perfeita; os barcos, emparelhados, lutavam com mais intensidade, para que aqueles mil e seiscentos metros fossem vencidos mais rapidamente.
“Araty”, falhou em sua tentativa, fraquejando justamente nos últimos cem metros, não dando mais trabalho a “Guarany” que, com boa diferença, venceu o páreo com o mesmo brilho e garra que o iniciara.
Realmente um dia memorável, ao sustentar a primeira de uma série gloriosa, de infindáveis competições seguidas, que o Internacional venceu.
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Em fins do século passado o esporte do remo era o mais praticado pelos apaixonados por atividades esportivas; um símbolo de aventura, determinação e resiliência, dada as intempéries que quase sempre enfrentavam, promovidas pela Natureza. Para complementar essa tendência, muitos clubes constituídos na época decidiam batizar como nome a alcunha de “Clube de Regatas”.
Nas origens do nosso amado clube, como primeira aquisição para essa atividade esportiva, duas canoas – “Cecy” e “Pery”, em alusão aos personagens que saltaram da obra “O Guarani”, de José de Alencar, para ilustrarem seus nomes à borda das velozes embarcações.
Além dessas canoas, uma guiga de corrida – nome dado a barco comprido e estreito, próprio para regata – batizada de “Iracema”; dois escaleres de corrida – pequenas embarcações a remo e a vela – de nomes “Tapuia” e “Guaianás”, e um escaler para recreação dos sócios, o famoso “24 de Maio”, que muita alegria e diversão trouxe aos associados da época.
Com o crescimento do número de sócios, rapidamente decidiu-se pela aquisição de quatro novas embarcações, que receberam, segundo a tradição, nomes indígenas: “Aygara”, “Jandyra”, “Jacy” e “Ivahy”.
Ainda precoce em seu nascimento, e o Clube Internacional de Regatas já dominava as correntezas e marés da região. Decidindo se aventurar em mares nunca dantes navegados, foi convidado em 1890 para disputar uma grande regata no Rio de Janeiro, na Baía do Botafogo. Naquele dia oito de novembro, os fluminenses conheceram toda a determinação e resiliência dos remadores H. Wright, Charles Wright, Sebastião Navarro, e do patrão Renato Malheiros. Os nossos Sonhadores de Bocaina chegaram à frente de todos no páreo de honra e cravaram seus nomes para sempre em tão prestigiada regata.
Os anos seguiram abarcados pelas constantes e ininterruptas conquistas, até que em 1908 foi aprovado um novo estatuto, determinando em seu artigo 7º que “não poderão fazer parte da classe de remadores do clube as pessoas reconhecidas como profissionais”, que para época seriam os marinheiros, pescadores, estivadores, catraieiros e afins. Outro fato curioso da época é que para se tornar sócio do Clube Internacional de Regatas, o interessado deveria saber nadar cem metros, o que era conferido através de um teste realizado pelos responsáveis do clube.
Em 1908, como parte das comemorações do décimo aniversário do Clube Internacional de Regatas, foi realizado o batismo da canoa “Cecy”. Ao som da Banda Colonial Portuguesa, que executou magistralmente o hino do clube, e entremeados pelos estampidos dos fogos de artifícios e dos tiros dados pelos pequenos canhões do Vermelhinho – sim, o clube tinha esses armamentos, usados em festas comemorativas ou para anunciar um grande feito – a Srta. Maria Ferreira Freire da Silva e o Sr. Nicolau Roland foram agraciados respectivamente como madrinha e padrinho da embarcação.
Após tal celebração, foram realizadas três competições, envolvendo os melhores remadores da região, além de convidados de outras localidades.
A primeira foi da categoria de Yols-gigs, para quatro remos, vencida pela “Pirahy”, com os remadores Gastão Souza, Antonio de O. Campos, Luiz Sonerol, Carlos Amaral e Jayme Sá.
A segunda, envolvendo canoas de seis remos, foi arrebatada pela nossa gloriosa “Pery”, conduzida pelos atletas José A. Carvalho. João Rimeão, Antonio P. da Silva, Ubaldo Pinto, e Marinho Camargo.
E a terceira, Yols-gigs de oito remos, vencendo “Poty” com os atletas Guilherme Gomes, Antonio de O. Campos, Luiz Soneral, Jayme Sá Carlos Amaral, Vasco Martins e Orlando Esteves.
Os Sonhadores de Bocaina tornaram a raia do Valongo, em 1911, testemunha de seus grandes feitos e conquistas. Na época, a modalidade era comandada com afinco pelos diretores Edmundo Souza e, posteriormente, Alpe Rutigliano. E os atletas que lapidaram esse momento de memorável felicidade foram Marcial Ribeiro dos Santos, Alfredo Klinbert, Mário Seifert, Arnaldo Pinto de Souza, Theodomiro Freitas do Nascimento, e Robespierre Rocha. Todos sob a égide do treinador Benedito Venceslau Carneiro.
O fato é que durante trinta anos o Clube Internacional de Regatas alcançou fama pelas vitórias de seus barcos nas competições de regatas.
Da primeira geração de sócios, vários se destacaram pelo notável entusiasmo e dedicação ao clube, recebendo por isso os primeiros títulos de Sócios Honorários: Arminda Teixeira da Fonseca, Cecília Teixeira da Fonseca, Isidoro de Campos, Herbert Theodoro Simon, Willen Theodoro Meismer e F. G. Naremann.
Vovô Agostinho sempre nos lembrava, em conversas, que o Clube Internacional de Regatas foi o primeiro clube dos Estados a se filiar na Federação Brasileira das Sociedades do Remo, fato de grande repercussão na época.
E tal afirmação era complementada por outra; essa, de uma dura realidade: no derradeiro ano de 1935, com a venda das instalações náuticas e a transferência do Clube Interacional de Regatas, de Itapema para a Ponta da Praia, a prática do Remo em competições foi encerrado. Com essa súbita desintegração, interromperam-se as glórias santistas nessa modalidade de esporte, pois os clubes, assim como o Vermelhinho, pouco a pouco se desfizeram de seus barcos de velocidade, e dissolveram suas equipes de atletas, passando a se dedicar a outros esportes.
Encerrada essa época de glórias, o Remo mergulhou nas brumas do passado, levando consigo os velozes barcos e seus incansáveis guerreiros, eternizados por flutuarem no mar com suas asas de prata, a rasgar ondas de luz.
Saudações Vermelhinhas!