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Velozes e Furiosos


Velozes e Furiosos

 

Paulinho se aproximou de mim, enquanto eu ocupava uma das mesas do restaurante do clube. Havíamos marcado uma conversa, para refrescar a minha memória sobre certa seara que convivi apenas como espectadora: as das inúmeras partidas de hóquei que tive o privilégio de assistir, desde bebê de colo.

O hóquei começou a ser praticado nas dependências do clube como modalidade em 1948, mesmo ano em que nasci, por coincidência dentro do clube, passagem que narrei em outra crônica.

Logo saiu disputando torneios e campeonatos, sempre como um dos favoritos ao título. O primeiro embate deu-se num torneio realizado em Santos, envolvendo o Clube Paulista de Patinação, o Santos F. C., o São Paulo de Santo Amaro, e o Clube Internacional de Regatas.

E fazendo jus ao carinhoso adjetivo de Família Vermelhinha, a primeira equipe que defendeu nosso brasão era formada por membros da mesma família: Edelberto Porchat de Assis Kannebley, Roberto Porchat de Assis Kannebley, Paulo Porchat de Assis Kannebley, Edzard Kannebley Porchat de Assis, Edmar Kannebley Porchat de Assis, e Jayme Kannebley Filho.

Em 1950, dois anos após o início de suas atividades, o hóquei do Clube Internacional de Regatas foi campeão paulista com Jayme, Edelberto, Edmar, Carvalhal, Waldyr, Pacheco, Zequinha, Thomaz Rittscher, Orlando Pites, Edzard, Roberto, Nílson, Álvaro, Paulo, Moura, Rubens, Martinelli, Luiz Felipe e Paulo Porchat Kannebley.

São 76 anos de muitas glórias, sendo considerado como um dos esportes que mais se identifica com o clube e que mais títulos conquistou.

Lembrei isso para Paulo, que deu um sorriso de canto de boca, como se lembrasse de algo.

– “Alguns desses troféus guardados no clube, tiveram um pouco da minha participação. Uma conquista do grupo, nunca individual” – gostava sempre de frisar, dentro de sua conhecida generosidade em palavras com os amigos e colegas.

Por trás daquele sorriso maroto, ladeado por alguns sulcos delineados no rosto que o Tempo e a Vida gravaram, estava um jovem vibrante, um atleta enaltecido por ser o segundo maior artilheiro da história de hóquei brasileiro, ficando atrás apenas de Vítor Santos, atleta do Sertãozinho Hóquei Clube. Título que demonstrava bem como Paulo se comportava na quadra: era veloz em seu raciocínio, e furioso ao dominar a bola com o stick.

– “Mas não era só eu, todos do time tinha essa índole inconsciente, uma fúria que nos tomava em busca da vitória, centrados e concentrados. E isso nos tornava mais velozes” – pontuou Paulo, saboreando cada sílaba que construía.

Paulo Roberto Pierri Gil, nascido em cinco de março de 1942, teve duas fases em que jogou hóquei no Inter:  a primeira, até se mudar para Catanduva, em 1966 – foi cuidar do negócio familiar de café, especificamente de uma central de torrefação. Fase em que desfilou melhor condicionamento físico por ser jovem.

Começou a jogar hóquei no Clube Internacional de Regatas com 14 anos, em 1956. O pai de Paulo, Francisco Gil, era goleiro, mas não teve o privilégio de jogar com o pai.

Logo que chegou, foi adotado por seu Ascendino, funcionário que cuidava dos patins dos atletas. Profissional dedicado, morava na praia da Pouca Farinha, do outro lado do canal, e trabalhava num espaço bem no fundo do clube, depois das quadras de tênis.

Naquela época, o Senhor Vera era o técnico, o diretor, fazia de tudo, muito, no departamento de Hóquei. Foi Vera que iniciou Paulo na modalidade. Num domingo de manhã, o técnico / dirigente foi assistir ao treino dos mais novos, que acontecia no Ginásio Principal. Ao final, se dirigiu ao jovem Paulo.

– Vem cá! – chamou assim o Vera, daquele jeito como quem não quer nada.

– Pois não, Seu Vera! – exclamou Paulo Roberto, num misto de surpresa e timidez.

– Tu não vais mais treinar com esse pessoal, não. Tu vais treinar com os grandinhos! – comunicou Vera para um Paulo de olhos arregalados.

– Pô, mas eu… é… não sou tão… é… – Paulo estava assustado com tamanha responsabilidade.

– Não! Vais jogar com os grandes! – finalizou Vera, decidido que estava.

– Tá bom, Seu Vera! – sem mais o que falar, uma nova fase começava na vida esportiva de Paulo Roberto.

E lá foi Paulo Roberto jogar com os grandes. No início, segundo o próprio Paulo “cada porrada que levava”, já que era o caçula da equipe e deveria aguentar por um tempo a série de provações que os veteranos costumavam submeter aos iniciantes.

Mas logo caiu nas graças da equipe como mascote da sorte do time, pois sua chegada trouxe junto uma bela notícia: dois de seus magníficos atletas foram convocados ao selecionado brasileiro de Hóquei, para disputar o campeonato mundial realizado na cidade de Porto, em Portugal – Nilson e Valir.

Segundo o noticiário local “a equipe que representará o Brasil, preparou-se convenientemente, tendo realizado jogos em São Paulo. Ainda que não se aguardem grandes resultados, pois o hóquei apesar de antigo no Brasil é um esporte que não se desenvolveu, mantendo-se em longo período de estagnação; espera-se, contudo, que nossa equipe venha a disputar com muito esforço e aplicação”.

Ainda sobre seleção brasileira, Paulo Roberto, Terroso – parceiro de Paulo no ataque -, e Nílson – goleiro -, seriam  titulares e base da seleção brasileira, quarta colocada no campeonato mundial da década de 50, melhor colocação do Brasil até então.

A família de Paulo Roberto Pierri Gil voltou para Santos em 1975, logo que o pai de Paulo faleceu, em 1974.  Paulo seguiu com retorno ao Inter, até receber um convite inusitado, que partiu de seu amigo Nilson, em um telefonema:

– “Paulo, preciso falar com você!”

– O que é que? Manda!”

– “Você vai jogar com a gente!”

– “Como vou jogar com a gente?!? Eu já jogo!”

– Não! Eu estou no Regatas!”

– “Como é isso?!?”

– “Isso que você ouviu. Eu estou jogando agora no Regatas, e você tá no Inter. Mas, não! você vai jogar com a gente!”

E foi ai que Paulo Roberto Pierri Gil, sócio do Inter, atravessou a rua Francisco Hayden e, com Nilson, Osmar, Terroso, e Mané, além dos atletas de Ribeirão Preto: Teco, Haroldo e Xixa, jogou duas temporadas no Clube de Regatas Santista, formando um time que foi bicampeão brasileiro

Com o desmanche do time do Regatas, parte foi para Sertãozinho abraçar um projeto da Prefeitura local, e assim criar o Sertãozinho Hóquei Clube.

Com a ida dos atletas para formarem o projeto de Sertãozinho, Paulo e Terroso voltaram para o Inter, encontraram o clube com uma base boa e atletas como Zé Guedes, Eládio, Bola e Lambreta. Logo depois subiram para o principal atletas do juvenil, como Marreco, Claudinho, Alfredinho.

Mas isso é outra história, para outra crônica.

Até porque, nesse momento, em nossac conversa no restaurante, conversa essa que iniciei a crônica, os olhos de Paulo se acenderam, como se trouxesse à nossa frente uma memória afetiva, daquelas impactantes.

– “O que foi Paulo? Que cara é essa?” – interpelei, apoiada em minha intimidade que guardo pela família Pierre Gil.

– “Você me fez lembrar que algo que há muito não resgatava!” – disse Paulo, sorrindo com o olhar.

– “Me conte, então!” – a curiosidade já me tomava de assalto.

– “Eu me lembrei do gol mais bonito que fiz em toda a minha vida” – Paulo, com ares juvenis, tomava conta da narrativa. “E também, minha melhor partida”.

– “Foi aqui no ginásio do clube?”

“Não! Foi em Portugal, jogando pela seleção brasileira de Hóquei, contra a Venezuela. Foi o gol mais bonito da minha carreira de atleta” – enquanto falava, eu observava o espectro do jovem Paulo surgir, com toda a sua velocidade e fúria.

– “Como em todos os jogos, eu ficava mais à frente, quase que ao lado do goleiro, para dificultar sua ação no jogo. Eu estava segurando de forma torta o stick, tentando distrair o goleiro, Eu tava de costas para o gol, recebi a bola de Terroso, pelo lado esquerdo, fiz um movimento de costas, batendo forte no canto direito, e que deixou o goleiro imóvel, aguardando o chute no canto oposto”, complementou um Paulo que lembrava em muito o rapaz de 17 anos, cortando a defesa adversária em busca de mais um tento.

– “Histórias como estas trazem de volta todo o poder e domínio que o nosso hóquei exercia sobre o Brasill”, pensei, enquanto toda essa conversa me resgatou outra, contada pelo meu querido pai.

No final de 1957, papai teve uma conversa franca com o querido Darci Stipanish, excelente atleta, que muitas vitórias trouxe ao clube empunhando seu stick. O assunto começou sobre potencial da modalidade nas fileiras desportivas do clube e desaguou na desistência de uma excursão do time Vermelhinho ao Uruguai. Tal relato papai desfiava em um ou outro almoço de domingo:

“Darci, por que você julga supérfluo e pretensiosos quaisquer dados estatísticos que venha comprovar a marcha acelerada do hóquei praticado no clube, a ponto de coloca-lo entre os esportes preferidos dos associados?” – tal curiosidade confesso que a mim parecia também fazer sentido.

“Ora, entendo que muita dedicação e grandes esforços estão sendo colocados a serviço do esporte de cajado e dos patins, por um bloco coeso e desprendido, para que os Internacionalistas não percam a posição invejável adquirida anos atrás, através de inúmeros feitos” – Stipanish era muito polido em sua fala e trato com o idioma nativo. E seguiu discorrendo sua visão para papai: “Sem receio em incorrer em erro, afirmo ser o Internacional de Regatas um dos maiores e poderosos conjuntos pátrios que disputam esta bela e vibrante modalidade de esporte”.

– “De onde vem tamanha convicção, Darci?” – papai gostava de alimentar a conversa com o amigo.

– “Simples: a prova dessa minha afirmativa é o honroso e cativante convite formulado por uma agremiação uruguaia, de representarmos o hóquei brasileiro numa competição internacional” – pontuou Darci.

– “E por que ressaltar isso? Não seria até normal esse tipo de convite?” – argumentou papai.

– “Porque o desenvolvimento desse esporte, como é do conhecimento geral, sem dúvida foi sempre lento, porém gradual e seguro” – ponderou Darci.

Darci tinha razão em destacar esse momento que o hóquei do Inter vivia. Uma das principais dificuldades que entravavam a melhor difusão do hóquei em território brasileiro era a importação dos materiais para a prática da modalidade, Aos poucos, essa dificuldade foi sendo paulatinamente vencida, pela tenacidade de pessoas capazes de surpreenderem não só nesse, mais em diversos setores. Como o próprio Darci profetizou nessa conversa “iniciativas similares não tardarão em ser seguidas nos demais estados onde se pratica o hóquei, resumindo assim o tempo de igualarmos aos demais centros avançados. Prevejo um futuro animador, pois quase todo o matéria está sendo confeccionado em diversos centros nacionais, com elevado índice técnico” – finalizou Darci.

Sobre a desistência do Internacional de Regatas em participar desse torneio, Darci explicou a papai que daria a resposta para a imprensa, em forma de nota, escrita dessa forma: “Através desta nota, desejo dar a lime, ciência a todos para que travem conhecimento mais íntimo sobre o malogro da excursão que o Departamento de Hóquei faria a vizinha República Uruguaia. Muito embora saiba o amigo que no Clube Internacional de Regatas sempre se praticou hóquei com “H” maiúsculo, nem todos sabem – ao redigir essa nota, notei que nem os próprios praticantes desta modalidade fogem à afirmativa – a razão principal da dissolução da referida excursão”.

“O idealizador dessa viagem foi orientado por diversas razões fundamentais, como sejam o incremento do esporte, a intensificação do intercâmbio, etc. A primeira dela, como já disse, seria intensificar o intercâmbio com atletas oriundos dos centros adiantados, pois o benefício sempre é o do mais fraco, isto é, daquele que não atingiu a perfeição”.

“A segunda: o acúmulo de experiência que naturalmente esta rapaziada colheria, e serviria ainda de provas para futuras disputas internacionais e, ao mesmo tempo, seria excelente oportunidade para um confronto de técnicas, pois seria realizado um autêntico campeonato sul-americano, e nada menos que oito clubes de diferentes países nele participariam”.

“A Diretoria anuiu plenamente a iniciativa, porém não se manifestou em ajudar financeiramente, face às condições expostas pela divisão, prontificando-se, entretanto, a tudo que se fizesse mister, pois estava a par das finalidades da excursão, e sabiam que só teriam de ser beneficiados em caso de sucesso, e quase tudo a perder na eventualidade de uma negligência desagradável’.

“Porém de quem esperávamos muita solicitude e devotamento para o sucesso, relegou a plano secundário os insistentes apelos daqueles que sempre lutaram com espírito de solidariedade, e que sobrevivem a qualquer espécie de turbilhão, pois acreditamos que aquele que tinha em mãos a responsabilidade da delegação, não soube corresponder suas afirmativas.”.

“Muitos dirão ser um insucesso que poderia se qualificar como dissolução de iniciativas similares. Para aqueles que conhecem de perto a dedicação dos dirigentes de hóquei, certos estão que o fracasso de uma iniciativa muitas vezes evoca uma outra futura, com pretensões brilhantes”.

Frente ao desabafado de Darci Stipanich, uma verdade: a de que nunca saberemos qual destino estava reservado naquele torneio uruguaio, para a máquina Vermelhinha de moer adversários e devorar medalhas.

E uma certeza: de que Stipanich sabia o desfecho para tal destino, por acreditar no poder de seus atletas velozes e furiosos. Não foi á toa que naquele ano de 1957, datado em 11 de novembro, a Federação Paulista de Hóquei encerrou suas atividades com a apresentação da seleção brasileira de hóquei ao público paulistano, no ginásio do Ibirapuera, num jogo contra o time do Clube Internacional de Regatas.

O resultado: Seleção Brasileira 3 X 10 Clube Internacional de Regatas.

Como sempre, Velozes e Furiosos.

 

Saudações Vermelhinhas!

 

(Esta crônica é uma homenagem à família Pierri Gil)

(As lembranças e passagens vividas por Paulo Roberto Pierri Gil representam uma homenagem a todos os atletas de hóquei que defenderam as cores do Clube Internacional de  nas décadas e 40, 50 e 60)