Carl Jung afirmou em vida que sonhos são as realizações de desejos ocultos.
Se a memória etérea desse brilhante psicanalista suíço sobrevoasse a cidade de Santos lá pelos idos da década de setenta, invadisse as dependências do Clube Internacional de Regatas, e se encaminhasse para a quadra poliesportiva onde aconteciam os treinos das equipes de bola ao cesto, encontraria tal frase personificada em um jovem atleta, alto e esguio, de postura humilde e olhar determinado.
Isso porque após a cada treino, de forma solitária, o uniforme encharcado de suor e o semblante determinado, esse jovem repetia incansavelmente um movimento de meio giro apoiado na ponta de um dos pés, técnica essa fundamental para qualquer atleta que se candidatasse à posição de pivô nessa modalidade esportiva.
O sincronismo dos movimentos se assemelhava à precisão de um relógio suíço: com a bola nas mãos, de costas para a cesta, fazia um meio giro como se fosse arremessar a bola pelo seu lado esquerdo; retornava então, bruscamente, num meio giro para o seu lado direito, arremessava a bola e, finalmente, convertia a cesta.
Incansável, repetia o mecanismo, finalizando ora para o lado direito, ora para o lado esquerdo. Fazia isso até o saudoso Benedito, zelador do clube, passar avisando que apagaria em minutos as luzes da quadra.
Essa entrega chamou a minha atenção. Ela expressava a paixão que um jovem tem pelo esporte, o amor que sente por um clube. Tanto que todas as vezes que, por coincidência, passava pela quadra naquele horário, parava por ali e ficava alguns minutos admirando tanto empenho, foco, e determinação. Nunca perguntei o seu nome, e decidi chamá-lo de jovem atleta Vermelhinho.
Tal determinação foi descoberta em uma peneira nas quadras do Clube Atlético Santista pelo então técnico Dirceu Leal, o querido Buru, que viria anos depois a construir uma vitoriosa carreira de formador de talentos no Vermelhinho da Ponta da Praia.
Assim que viu o adolescente alto e esguio, a passos firmes entrando em quadra, Buru se dirigiu a ele e disse: “Ô magrinho, você não vai sair mais daqui, você vai ficar aqui!”.
No que o menino respondeu “Professor, eu tô começando, meu primeiro dia”, o mestre encerrou a conversa com um “Não, não, não. Fica aqui. Eu vou te orientar. Você vai ficar bem”.
Foram meses de muita orientação e dedicação, até o jovem atleta ser selecionado em outra peneira, organizada pelo Clube Internacional de Regatas, na época comandada pelo saudoso treinador Canarinho.
Os meses corriam. E assim como o jovem atleta Vermelhinho seguia calibrando seus arremessos, a década de setenta avançava a passos de gigantes, presenciando a disputa pela hegemonia do basquete regional, onde quatro clubes buscavam, através de muito planejamento nas categorias de base e principal, o posto mais alto nas competições: Clube Internacional de Regatas, Clube de Regatas Saldanha da Gama, Clube Atlético Santista, e Clube de Regatas Tumiaru.
Como sempre fui apaixonada por esportes, sou suspeita em atestar esse fato, mas o Clube Internacional de Regatas sempre proporcionou aos sócios e aficionados pelo esporte partidas inesquecíveis, recheadas de momentos ímpares e absolutamente primorosos.
De tantas que acompanhei, uma em especial marcou a todos que compareceram na arquibancada do ginásio poliesportivo, pois era uma aguardada final de campeonato santista.
Já não se falava mais bola ao cesto, agora o nome adotado pela modalidade era o moderno basquetebol. Porém, o adversário que entraria em quadra era um velho conhecido do Vermelhinho da Ponta da Praia: o poderoso Clube de Regatas Saldanha, com uma esquadra de jovens talentos, dirigida pelo técnico Zé Maria e liderada pelo atleta Roberto Lapetina, uma das lendas do esporte regional.
Titulares na mesma função, nosso jovem atleta Vermelhinho e Roberto Lapetina já haviam se enfrentado algumas vezes. Ambos sócios atletas, guardavam algumas coisas em comum: nasceram no dia 19 de setembro, eram focados e determinados, dominavam a técnica do meio giro, desestabilizavam defesas adversárias, e adoravam se deleitar em grandes fatias de pizza.
Por outro lado, uma diferença poderia ser decisiva em quadra, criando uma distância abissal entre esses dois atletas: Lapetina já era conhecido e reconhecido no cenário esportivo; o jovem atleta Vermelhinho estava há parcos anos trilhando no amadorismo.
Lapetina via no jovem oponente um desafio à altura, a ser vencido no futuro. Tanto que, mesmo levando certa vantagem sobre o jovem atleta, dedicava a ele marcação especial nos jogos em que se encontravam.
E isso não seria diferente nessa final.
Desde o primeiro segundo de partida, os dois times se alternaram no placar, exigindo dos técnicos constantes mudanças de estratégias e formações.
Os arremessos precisos de ambas as equipes equilibravam a forte marcação exibida dentro de quadra. A partida seguia numa equidade digna da deusa Themis.
Foi quando percebi que aquela famosa frase de Jung “os sonhos são as realizações de desejos” estava não só se personificando, mas também se fortalecendo, num já familiar movimento repetitivo, em toda a sua precisão e maestria.
A cada investida do esquadrão Vermelhinho rumo ao garrafão adversário, o jovem atleta se posicionava cirurgicamente no único espaço provável que a bola poderia alcançá-lo. E como uma improvável conjunção entre o Cósmico e a Imponderabilidade, ela o encontrava.
Passado este primeiro desafio, instantaneamente surgia outro, aparentemente intransponível: o gigante Lapetina se posicionava como imponente Cordilheira às costas do jovem atleta Vermelhinho, que convidava o implacável marcador para uma dança de meios giros, coreografada pela obstinação de ambos.
Bom para o jovem pivô, que naquele dia honrara o psicanalista suíço: uma a uma, as cestas se sucediam em meio ao bailado dos movimentos de idas e giros, deixando a defesa perdida e Lapetina atordoado, olhando para o vazio, quando o espaço a ser preenchido rumo à cesta tomava outro rumo.
Ao apito final, o ginásio explodiu em festa. Os atletas de ambas as equipes, consumidos pela intensa entrega que se abatera sobre eles ao longo do embate, mutuamente se abraçaram, reconhecendo que todos saíram vitoriosos naquele dia, pois cravavam em suas memórias afetivas uma das maiores finais que aconteceram em solo santista.
O jovem atleta Vermelhinho era ovacionado pela torcida, que invadiu a quadra para comemorar em uníssono a inesquecível conquista; e celebrado pelos veteranos companheiros de esquadra, que se rendiam à sua apresentação de gala.
Eu, que por várias vezes presenciei sua solitária determinação após treinos puxados, fui cumprimentá-lo, muito emocionada. E disse a ele que, com a determinação que tinha, chegaria a qualquer lugar.
O jovem atleta, olhos avermelhados pelo resquício das emoções que o possuíram, me confidenciou que estava deixando o clube que tanto amava, pois iria estudar Engenharia fora da cidade.
Antes que eu pudesse de alguma forma consolá-lo, ele continuou, dizendo, para minha surpresa, que lembrava de mim, das vezes que eu ficava encostada na mureta da quadra para vê-lo treinar sozinho. Que muitas vezes ele estava se entregando ao cansaço, mas a minha presença representava para ele um apoio para que fosse um pouco mais além, suportasse um pouco mais a dor e o cansaço.
Por fim, me prometeu que voltaria um dia e se despediu. Antes que pudesse seguir em direção ao vestiário, levando consigo seus próximos sonhos, perguntei a ele o seu nome.
“Hélio, minha senhora!”, disse o jovem atleta Vermelhinho.
Hélio, o jovem atleta Vermelhinho, muitos anos depois, conforme prometido, retornou ao Internacional. Comprou um título, trouxe a família para se apaixonar também pelo clube. E fez mais por ele: se tornou conselheiro, diretor executivo, membro de comissão fiscal.
Foi o primeiro sócio atleta a ser eleito presidente do Clube Internacional de Regatas; talvez o primeiro do Brasil.
Tive a honra de ser convidada para participar da posse de sua Diretoria Executiva. Estava muito emocionada, principalmente ao ver refletido em seu olhar a mesma humildade e determinação que carregava em cada treino, em cada partida.
Lembrei de Buru, cujo olhar diferenciado enxergou nos passos de Magrinho uma bela Jornada de gigantes.
Lembrei de Carl Jung e sua personificada frase.
Mas também lembrei de outra, sempre repetida por papai em seus lampejos de sabedoria: “Nunca diga que alguma coisa é impossível. Diga que é improvável”.
Saudações Vermelhinhas!
(Essa crônica é uma homenagem à família Vermelhinha Ramos Hélio)
MICROBIOGRAFIA CLUBÍSTICA – A História da família Ramos Hélio no C.I.R.
(Em breve)