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Dias de Luta, Dias de Glória


Dias de Luta, Dias de Glória

 

Dia desses, ao percorrer a área social do clube em direção à piscina social, uma saudosa brisa me envolveu, resgatando uma nostalgia vivida, porém distante de minhas lembranças. O aroma de alfazema foi determinante para disparar um gatilho emocional em mim: laços foram refeitos e em minutos me vi mergulhada no frescor e na pureza de meus seis anos de idade.

Laços esses reforçados pelas pilastras da tradição oral que dominava a sala de jantar em meio a nossos divertidos almoços dominicais, momento em que vovô e papai abusavam da memória para narrar fatos que envolviam a relação familiar com nosso amado clube.

Pois esse aroma conhecido da infância me levou para maio de 1954, quando o Clube Internacional de Regatas completava cinquenta e seis merecidos anos.

Lembro da euforia de papai e vovô resgatando empolgantes passagens, de seus olhos iluminando a nossa fértil imaginação, e da conjunção de pequenas histórias que ilustraram uma das maiores conquistas da História do nosso Vermelhinho: a construção e inauguração da piscina de competições do clube, considerada na época a mais moderna do Brasil.

Para os mais antigo tornou-se Odisseia, uma epopeia que começou a tomar forma em setembro de 1951, sob a gestão do querido e saudoso Nelson Serra. Papai comentava que, para os fundadores do Clube Internacional de Regatas, foi um sonho que se transmutou em concreto armado.

Sofreu, é verdade, várias interrupções, quase todas decorrentes pela falta de dinheiro. Tais colapsos eram revertidos por autênticos milagres, proporcionados pela magia que só os verdadeiros idealistas conseguem realizar.

Em outra ocasião, quando o perigo já parecia resolvido, era o cimento que faltava. Não se encontrava tal matéria-prima em lugar algum da região. Não se fez outra coisa, a não ser esperar a chegada desse suprimento à cidade, para então, tudo ao entorno da obra tomar vida, ritmo, trabalho e realização.

Não se passou muito tempo sem que nova tormenta surgisse, quando uma séria crise de falta de água tomou de assalto o canteiro da obra. Nem uma gota do líquido precioso para utilizar na mistura dos materiais de construção.

Cavaram-se poços. Mas a água negou-se a cooperar, já enciumada, talvez, com o tratamento carinhoso que seria dedicado às futuras águas da piscina.

E foi assim, entre tempestades e bonanças, fases boas e más, os anos avançaram até o limiar de 1954, onde finalmente apontava no horizonte do Internacional a entrega de obra tão resiliente quanto esplendorosa, orgulho da cidade de Santos: o mais moderno aparelho de contendas aquáticas da América do Sul.

A um custo de quatro milhões e trezentos mil cruzeiros, a caixa da piscina foi construída dotada de dimensões exigidas para a época (25 metros por 18 metros), com capacidade para oito balizas, e com duas margens aos lados das balizas um e oito, com um metro cada margem. A profundidade, de dois metros e dez centímetros na parte mais rasa, caindo em declive para três metros e trinta centímetros.

Não importa em que local das arquibancadas se esteja sentado, a visão do tanque é total. O volume de água de um milhão e duzentos mil litros. Arquibancadas e tribunas com capacidade projetada para 2.700 pessoas, normalmente divididas em seções: a social e a pública.

A iluminação geral externa feita por vinte holofotes de 1.000 watts cada um, em torres espaçadas para a dosagem e luz; Iluminação subaquática, feita por intermédio de vinte e quatro holofotes de luz forte ou fraca, colorida ou não; holofotes esses de controle manual, podendo assim oferecer encantador aspecto proporcionado pela constante mutação dos focos de luz, principalmente quando da realização de shows aquáticos. Três potentes transformadores de energia para 150.000 watts, capacidade essa idêntica às necessidades de um prédio de vinte andares, com sessenta espaçosos apartamentos.

Tamanha magnitude de obra teve uma inesquecível inauguração, repleta de simbolismos e reverências.

Papai sempre lembrava, em suas observações sobre o assunto, a contemplação de todos os presentes voltadas aos remanescentes fundadores do Clube Internacional de Regatas, que compareceram e foram homenageados no evento: Adolfo Hayden Barbosa, Esaú Silveira, Henrique Porchat de Assis, João Guimarães Junior, Manoel Martins de Oliveira, e Raul Schmidt.

Como o querido Carlos Alberto Hernandez chegou a salientar na época “seis bravos que fremiram de entusiasmo acompanhando passo a passo, em suave enlevo, o surto extraordinário, o progresso fantástico, a situação promissora e confortante de segurança alcançada pelo grêmio, por eles despretensiosamente criada no longínquo ano de 1898”.

A obra realmente era algo sem precedentes no urbano cenário de Santos, e concretizava também o sonho de uma população acostumada a contemplar as atividades esportivas que o clube se envolvia, e os espaços que proporcionava para as competições: foi assim ao oferecer uma quadra coberta, onde jogos e torneios de dimensão nacional passaram a ser realizados. E uma piscina de amplas dimensões e confortável capacidade de alojamento do público. Um marco de ouro na Jornada percorrida, de forma vitoriosa, pelo Clube Internacional de Regatas.

Cronistas da época cravaram que “sócios e dirigentes elevaram-se todos à compreensão de que não se tratava, unicamente, de festejos comemorativos à passagem de mais um aniversário de fundação do Clube.

A formação súbita de um sentido valorativo diferente, fez com que se apercebessem da essência profunda, séria, quase sobrenatural do evento, provocando a emoção coletiva.

Respiravam, dirigentes e associados, uma atmosfera ao mesmo tempo de entusiasmo e recolhimento, de alegria e comoção, de vitória e melancolia. Gravitavam, no ambiente, lembranças muito antigas, que, docemente, se animavam e encadeavam na memória de cada um.

Porque circunstâncias especiais atuaram sobre as presentes, de forma a empolgá-los e fazê-los sentir o momento em toda sua majestosa plenitude.

Era a homenagem póstuma a um campeão chamado Teodomiro Freitas do Nascimento, e relembrar dias de glória do Internacional, a constatar quanto pudera a capacidade e a fé orientadas por um ideal”.

Papai sempre lembrava da ausência sentida por todos no dia dessa inauguração, saudade essa de um querido associado que se curvava ao peso do inverno da Vida: o benevolente Manoel Martins de Oliveira, ou simplesmente Maneco Martins.

Fundador do Clube Internacional de Regatas, um dos atletas sonhadores de Bocaina, conselheiro, diretor e presidente da Diretoria Executiva nas gestões de 1901, 1911, 1912, e de 1918 a 1920, Maneco era antes de tudo, um apaixonado pelo clube.

Segundo papai, enquanto a saúde o permitiu, Maneco frequentou nossa sede social, compareceu a diversas realizações e delas participou ativamente. Nas lembranças de papai ficaram a alegria, a disposição e o entusiasmo surpreendente juvenil que iluminava sua fisionomia cansada, quando se referia ao progresso que paulatinamente transformava o “Gigante do Itapema” no “Gigante da Ponta da Praia”.

Oito dias antes da inauguração oficial da piscina esportiva do Vermelhinho, uma singela e inesquecível homenagem de reconhecimento e veneração foi feita ao nosso querido Maneco, tamanha devoção e carinho entregou ao clube.

Papai estava presente nesta bela tarde de maio quando, em sua última visita ao Clube Internacional de Regatas , Maneco foi recebido de forma emocionante por toda a Diretoria do clube, tendo à frente dessa recepção o presidente Nelson Pires.

Uma surpresa o aguardava: decidiram que ele fosse, antes da entrega oficial aos associados e ao público, o primeiro a conhecer o maior empreendimento da história do clube. Em companhia de todos os dirigentes e amparado pela esposa, percorreu, demoradamente, as novas instalações.

Tais lembranças faziam brotar lágrimas dos olhos de papai. Ainda mais quando traçava os últimos passos dessa derradeira visita que Maneco fez à agremiação que tanto amava: o velho sonhador de Bocaina emocionou-se e pouco falou. Pelas breves palavras que pronunciou em conversa, todavia, e pelas lágrimas incontidas de sua companheira, todos ali testemunhavam o legado que Maneco Martins imprimira através de meio século de dedicação e trabalho ao Clube Internacional de Regatas, uma das razões de sua existência.

Á margem desse momento, outras questões tornaram marcante a inauguração de majestosa obra, muito bem retratada nos olhares de cronistas da época: “Era a consolidação de velho sonho da família Vermelhinha, inaugurando após vários anos de luta, desprendimento e trabalho, instalações que honram Santos e enriquecem o patrimônio esportivo de São Paulo e do Brasil.

Era o retorno de Arnaldo de Barros Pires, um baluarte da construção de nosso ginásio – marco inicial da sequência de desenvolvimento material obtida após a mudança de Itapema”. E que tratarei em uma futura crônica.

“Era a reafirmação da amizade tradicional que nos une às principais agremiações coirmãs do País, manifestado através do comparecimento cavalheiresco e cordial de delegações do Rio de Janeiro, de São Paulo, e dos clubes locais.

Era a presença quase unânime das autoridades municipais e estaduais, numa demonstração de aplauso ao investimento que se concluía e de incentivo para o futuro.

Era o aparecimento de uma concepção nova, a consciência de força conjunta e de parte individual integrante de um todo homogêneo e unido”.

Os dias de luta se transmutavam em dias de glória.

O programa comemorativo teve início, à véspera do aniversário, com o tradicional baile de gala, seguindo-se depois, no dia seguinte, na abertura das comemorações desportivas, a regata de veleiros, os jogos de volibol masculino entre o Internacional e o Santos; de bola ao cesto feminino do Internacional com o Fluminense FC e bola ao cesto masculino, reunindo Internacional e Santos.

Às vinte horas eram inauguradas, numa reunião que a saudade e a gratidão pontificaram as placas “Ginásio Arnaldo de Barros Pires” e “Piscina Teodomiro Freitas Nascimento”. Procedeu-se, então, a concretização do máximo ideal dos “Vermelhinhos”, a cristalização do mais bonito sonho dos que querem bem ao Internacional: a entrega ao corpo associativo da magnífica piscina que acabava de ser inaugurada. Foram instantes de intensa emoção naquele 24 de maio de 1954, e que se constituía no início de uma nova era na vida do Clube Internacional de Regatas.

No dia seguinte, vinte  cinco de maio, procedeu-se a abertura pública da piscina à população santista, já que na véspera fora a inauguração um ato íntimo e apenas proporcionado aos sócios. Não poderia ter sido melhor: tal como na véspera, voltaram a competir atletas brasileiros e sul-americanos, exibindo-se depois os magníficos “Aqualoucos”, liderados pelo humorista Ronald Golias, que arrancou fartas gargalhadas de milhares de pessoas que compareceram em peso à disputada arquibancada. A festa, avançando pela noite, foi encerrada com a bela e apoteótica apresentação do ballet aquático do Fluminense F.C.

Paralelamente, houve competições de tênis de mesa entre as equipes do Internacional e Cisplatina, de São Paulo; e de disputadas partidas de xadrez, envolvendo enxadristas do Vermelhinho e Clube de Regatas Tumiarú.

Realmente, um acontecimento de magnitude à altura do Gigante da Ponta da Praia.

Queridos leitores, depois dos fatos descritos aqui, enalteço que a conclusão dessa obra representa a vitória da resiliência, sempre constante na história do nosso amado clube. Sentimento este vivido intensamente, em tempos atuais, pela travessia de uma pandemia.

Sem a perseverança, sem o espírito de sacrifício, sem as vigílias, sem as insônias, sem as mil e uma dificuldades que surgiram, desaparecendo e tornando a voltar dias depois, sem a vontade de lutar para poder vencer, e sem o desejo de vencer para tornar maior o desporto regional e nacional, tal projeto ficaria apenas naquele sonho de 1950, que ninguém acreditava pudesse se tornar realidade.

E que hoje está aí, à vista de quem o queira contemplar, forjado em dias de luta, enaltecido em dias de glória.

Saudações Vermelhinhas!