Ah, os anos cinquenta!
Eu tinha apenas três anos quando se iniciaram e me preparava para entrar na adolescência quando eles se foram, num belo e gigantesco rastro dourado, que mostrava ao mundo que ele não seria mais o mesmo, dada as profundas mudanças culturais e sociais que devastaram ideias e ideais.
Os anos cinquenta forjaram a TV no centro da sala de estar como meio de comunicação; uma constelação de musas e atores de cinema ganharam as telas, os corações e mentes de uma geração, capitaneadas por Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, Brigitte Bardot, Marlon Brando e James Dean.
Uma década responsável por lançar a cultura jovem, que ainda não existia. Até então, preparados para uma vida de responsabilidades, o pós-guerra os afasta da rigidez dos anos quarenta, e os mergulha num contexto de comportamentos rebeldes e libertários, dando pela primeira vez aos baby boomers o poder de formar sua própria cultura, e escolher sobre o que comprar, vestir, e ouvir.
A batida empolgante da música negra e o estilo agressivo, sexy e rebelde do rock n’ roll tomaram de assalto as vitrolas dos pais e o imaginário dos filhos, conduzidos pelo dedilhar das guitarras e gorjeios míticos de Bill Haley, Buddy Holly, Chuck Berry e Elvis Presley.
Cultura virou moda, e moda virou cultura. A popularização do biquíni no corpo de Brigitte Bardot, fotografada numa praia no sul da França, e o New Look de Dior impulsionaram a forma das mulheres se enxergarem e se imporem. Balenciaga, Chanel, Givenchy, Balmain, entre outros, mostraram que a mulher podia ter glamour, esticando a corda da vaidade humana, ao incrementar camisetas e jaquetas de couro com saias godê, saias plissadas, calças cigarretes, sapatos baixos, suéteres, blusas de gola colher, luvas, sapatilhas, lenços amarrados no pescoço ou envoltos na cabeça e óculos gatinho. As lingeries eram peças glamourosas e sofisticadas, como cintas-ligas, meias coloridas, corpetes e sutiãs com bojos pontiagudos.
Tudo isso era assunto recorrente nas conversas de mamãe e vovó com as amigas, em deliciosos chás de sábado à tarde que aconteciam quase que religiosamente em casa. Revistas importadas passavam de mão em mão, por quase todas que ali se encontravam. Quase todas: eu, só tinha esse privilégio se algumas dessas revistas fossem folheadas por mamãe ou alguma amiga dela.
Mas houve um sábado no ano de 1959 que o assunto que transitava tanto na roda de conversa, quanto nas conversas paralelas, aparentemente sigiloso, envolvia uma das mulheres à mesa. Rosa, esposa do então presidente Nelson Serra, à frente do Clube internacional de Regatas desde 1950.
– “Nelson decidiu que irá renunciar à sua reeleição” – disse calmamente, sem revelar nenhuma emoção que a comprometesse, se é que assim o fosse.
O silêncio se fez presente, substituindo murmúrios desconfortantes por olhares empalidecidos.
– “Aconteceu algum problema entre ele e a Diretoria?” – interpelou mamãe, se ajeitando melhor na cadeira.
– “Nada! Trabalham como engrenagens de um relógio suíço. Ele está decidido, pois entende que há necessidade de uma renovação na direção do clube. Coisa de homens!” – devolveu Rosa, sorrindo ao pronunciar a última frase.
As mulheres presentes ali, parte delas eram esposas de diretores do clube e, de certa forma, entendiam o que Rosa queria dizer.
– “Pelo menos deveriam fazer alguma homenagem por tanto que fez ao clube. Olha a nossa piscina de provas!”, exclamou uma das amigas de vovó.
– “Decerto que sim. Parece que o Conselho o fará Sócio Benemérito. Como disse há pouco: coisa de homens!” – encerrou a frase com um sorriso nos lábios, seguida de risadas proporcionadas pelo grupo que ali se reunia.
…
Nelson Serra foi o vigésimo sexto presidente eleito para gerir o Clube Internacional de Regatas. Herdou a batuta de Roberto Rodrigues Moreno que, por sua vez, foi empossado após turbulenta saída do querido e saudoso Arnaldo de Barros Pires, por motivos que deixarei para contar em outra crônica.
O fato é que Nelson Serra não dormiu no ponto (desculpem a gíria, mas esse era um dos atributos de Nelson Serra, sempre à frente dos outros, quando o assunto era melhorias para o nosso amado Clube Internacional de Regatas), e idealizou, logo na largada de seu primeiro mandato, seguir com os ventos da modernidade, com a ideia de construir uma piscina para campeonatos e torneios, (cuja inauguração já foi motivo de crônica escrita por mim) e assim fazer companhia ao belo ginásio de esportes que trazia orgulho para os associados.
Nelson comandou o clube entre 1950 e 1959. Muitos foram os momentos em que sua figura foi enaltecida pelos atos e fatos que brilhantemente o envolveram.
Em 1956, foi muito bem destacado pelas palavras do cronista Anibal de Souza, ao ressaltar a campanha promovida pela Diretoria de Esportes, empenhada não só em aumentar o número de associados praticantes em natação, polo aquático, saltos ornamentais, iatismo, balé aquático, bola ao cesto, voleibol, tênis de mesa, futebol de salão, hóquei, xadrez, judô, esgrima, ginástica de aparelhos, tamboréu e bocha; mas também estimular a participação dessas modalidades em campeonatos estaduais e brasileiros, prestigiando tais modalidades praticadas por inúmeros associados:
“Essa campanha foi iniciada a partir de 1950, com a eleição do Sr. Nelson Serra para a presidência, substituindo o Sr. Roberto Moreno, iniciando-se então uma nova era que colocou o Internacional em evidência no cenário esportivo de Santos e do Brasil pelas suas realizações. Logo que iniciou suas atividades, por sugestão do Diretor de Esporte, apoiado pela presidência, filiou-se o Internacional às Ligas de Bola ao Cesto, Voleibol, Tênis de Mesa e Liga Santista de Esportes Aquáticos. Fazendo um retrospecto da administração do Sr. Nelson Serra, deve-se ressaltar os acontecimentos e empreendimentos sob sua direção e orientação. Promover a remodelação do ginásio, construindo modernas arquibancadas de cimento armado; concluiu as obras do palco e dos dois salões ao fundo do ginásio, dos quais só existiam os alicerces; construiu diversas quadras externas, para a prática de vários esportes; levou adiante o plano de construção da piscina das crianças; remodelou a quadra de Croquet; murou todas as dependências do clube; colocou tabelas para bola ao cesto de vidro com armação de ferro, o que deixou a área do ginásio completamente livre; revestiu a parte interna das arquibancadas, a fim de serem usadas, parte pela Secretaria do clube, parte pela Secretaria do Departamento de Esportes; das laterais, para servir de depósito de materiais. Liquidou várias dívidas do clube e, finalmente, foi concluído o maior sonho do Vermelhinho: a belíssima piscina, iniciada em 1951, feita com os maiores sacrifícios, com esse dinâmico presidente a animar, orientar e incentivar, quando o desânimo queria se apossar de seus companheiros de Diretoria. Somente agora, ao ouvir as palavras de elogio e engrandecimento ao monumento de concreto armado, damos vazão ao nosso orgulho, tanto tempo recalcado em nosso íntimo, e damos valor duplicado ao seu esforço.”
Em outra passagem, agora em 1957, o jornalista Antenor Rodrigues Duarte, teceu elogios, em sua coluna de O Diário, ao querido Nelson, à frente de uma conquista inimaginável para a época; o Clube Internacional de Regatas sagrou-se campeão paulista de Natação, quebrando a invejável série de conquistas do clube Pinheiros da capital:
“Foi inegavelmente Nelson que levou o Internacional às alturas em que hoje se encontra. Com dinamismo soube levar adiante iniciativas consideradas irrealizáveis anteriormente. A ele cabe, portanto, a façanha de conseguir para Santos o Campeonato de Natação, porque com seu senso de dirigente cercou-se de colegas dispostos a mourejar. Nelson soube preparar essa vitória, escolhendo os técnicos Mariani e Hirano, de fato competentes e que não dormem no ponto” (essa tal mania de cronista usar gírias em seus textos não é de minha autoria, apesar de fazê-la)
Certa vez, Antenor confessou ao meu querido e saudoso pai, motivo de tanta admiração por Nelson.
– “Conheço Nelson desde os bons tempos de juventude, por isso posso avaliar seu espírito de iniciativa e capacidade de progredir”.
– “E de onde vem tanta energia e perspicácia?” – interpelou papai, curioso por tamanha admiração.
– “Desde muito novo, Nelson gostava de tentar coisas novas, desconhecidas. Por exemplo: Nelson foi o primeiro a trazer para Santos um aparelhamento completo de Jazz Band, quando ainda a música americana ensaiava a sua entrada no Brasil.”, disse orgulhoso o querido Antenor.
– “Mas isso é extraordinário. Eu não sabia disso!” – exclamou papai.
– “Poucas pessoas sabem disso. E ele também foi o primeiro a executar, e bem, em nossa cidade, o complicado instrumento ianque. Depois dessa sua iniciativa progressista é que começaram a aparecer os que procuravam imitá-lo na execução da música norte-americana” – Antenor encerrou o assunto dando sua sonora e deliciosa gargalhada.
Esse era Nelson Serra, que pelo feito ficou conhecido no meio clubístico como o “General da Vitória”, antecedendo em um ano alcunha parecida, que seria dada a Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação brasileira de futebol, que trouxe da Suécia o primeiro título mundial de futebol para o país. No caso “Marechal da Vitória”.
…
Nelson Serra,
Um visionário, que cumpriu cada ato gestual, cada palavra pronunciada, e registrado de próprio punho, em inesquecível Editorial de lançamento da “Internacional em Revista”, em maio de 1954:
“Há 3 anos e meio, ou seja, precisamente em 16 de Novembro de 1950, retirávamos do solo o primeiro pó de terra, iniciando a construção de nossa piscina, mero sonho, então, que apenas prometia concretizar-se um dia. Hoje, data que efetivamente a inauguramos, esplêndida, realidade que é, temos a satisfação de falar à grande família “vermelhinha”, por outro empreendimento gigante: a nossa primeira revista!
E é nossa intenção, aproveitando tão feliz ensejo, externar, através destas apagadas linhas, sem floreio de retórica e pretensiosos conceitos, a grande admiração que temos pelos que conosco batalharam para esta Vitória Final, a VITÓRIA DA TENACIDADE, a Vitória que também é comum, pois deu à cidade uma piscina que será motivo de justificado orgulho para tidos os santistas.
Aos nossos colaboradores, Fundadores, Conselheiros, Associados, Amadores-prestantes, Titulares e seus familiares, a manifestação do nosso reconhecimento, à IMPRENSA e ao RÁDIO, semeadores da ideia que germinou e frutificou, o MUITO OBRIGADO pelo amparo e incentivo que sempre nos deram.
Imaginai, senhores amigos, a satisfação profunda, o desvanecimento que vai na alma, por esta efeméride! Cônscios do dever cumprido, cercados por um pugilo de companheiros dedicados, conseguimos, mercê de Deus, romper todos os obstáculos, aparar todas as arestas que nos feriam os pés nesta longa caminhada, para depor, a final, no altar da Vitória, a bandeira sagrada de nossos ideais! Ideais representados pelo aumento incessante do vultoso patrimônio moral e material que recebemos de nossos antecessores!
Para isso, terminando, queremos homenagear, com o destaque merecido, todos os FUNDADORES DO CLUBE, homens valorosos e destemidos que, no passado, tudo fizeram para que nosso clube se projetasse no cenário esportivo do país, com essa pujança que nos orgulhamos de possuir; patrimônio esse que temos o sagrado dever de transmitir, aos que nos substituírem, cada vez maior, para poderem guarda-lo eternamente.
Obrigado, muito obrigado, prezados colaboradores,
Nelson Serra”
Esse era Nelson, o nosso eterno General da Vitória.
Saudações Vermelhinhas!