Pular para o conteúdo
Início » Crônicas » Quase em Lugar Nenhum

Quase em Lugar Nenhum


Quase em Lugar Nenhum

 

Em outra crônica, intitulada “O Gigante de Itapema”, descrevi o passo a passo do nosso amado Clube Internacional de Regatas, como era conhecido na década de 20 do século passado, época em que sua sede social se encontrava na região de Pae Cará. O clube ia de vento em popa, arrebatando títulos, fama, e número crescente de associados.

Mas como diz a sabedoria popular, não há bem que dure. E o que não se esperava, aconteceu: as vacas magras se alinharam no horizonte do clube e os ventos decidiram soprar para outros lados, deixando nosso amado Vermelhinho em meio a uma tenebrosa calmaria, daquelas que se abatem cruelmente bem no meio desértico do Oceano.

Aos poucos, a sede deixou de ser frequentada pelos associados. As atividades foram gradativamente diminuindo, a ponto da receita ser insuficiente para cobrir os gastos de conservação dos aparelhos e materiais sociais. Época em que começou a tomar conta das estruturas Vermelhinhas o temor de que a chama que iluminara seus últimos trinta anos se extinguisse no silêncio da noite.

Mas o que estava acontecendo para justificar tamanha penúria que se erguia defronte ao panteão Vermelhinho? As explicações surgiam, apontando de forma caótica para diversas arestas.

Em certas rodas de conversas chegava-se ao consenso de que foi a modernização do município, a criação de novas atrações e sociedades desportivas dentro do próprio perímetro urbano. Em outras, os argumentos sustentados tomavam outro rumo, afirmando de que a questão estava na dificuldade de condução para Itapema e a concorrência de outros clubes de Praia, com o aparecimento dos jogos recreativos à beira mar. E ainda outros, que defendiam o que entendiam ser o mais óbvio: o desinteresse pelo remo.

O fato é que nenhum desses fatores apresentados individualmente foram os responsáveis pela queda do Gigante de Itapema; mas todos eles, atuando de forma coletiva, é que estimularam a decadência de agremiação tão desejada pelos “Jovens Sonhadores de Bocaina”.

Importante para isso ilustrar o que acontecia com Santos nas décadas de vinte e trinta do século passado: a cidade já deixara de ser aquela simples província, da época em que fora fundado o Clube Internacional de Regatas, restrita tão somente à parte residencial-comercial, cujo limite urbano compreendia as ruas General Câmara, João Pessoa, Xavier da Silveira, Bittencourt, Braz Cubas, São Leopoldo, como parte central; e parte do bairro da Vila Matias, as ruas Senador Feijó, Lucas Fortunato, Prudente de Moraes e adjacências.

O porto seguia seu destino de ser grandioso, ampliando seus tentáculos operacionais pelas glebas ao longo do Estuário. A paisagem mudava no centro, empurrando para o periférico as famílias e suas moradias.

Santos tomou forma, crescendo por completo. A zona residencial instalou-se definitivamente na orla da praia, provocando súbito e acelerado desenvolvimento. O centro ficou destinado às atividades comerciais, com a transferência do coração da cidade para os bairros próximos ao mar.  As avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias foram estrategicamente cirúrgicas no escoamento da população para as novas áreas de lazer que pipocavam na orla da praia, além da construção de casarões e amplas moradias.

Com todo esse movimento, Santos passou a oferecer um cenário diferente para o crescimento do Turismo, trazendo como consequência o embelezamento da orla da praia, com seus jardins convidativos ao passeio. O Recreio Miramar, ocupando grande quadra na esquina da Conselheiro Nébias com a praia.  Conhecido como o “Palácio Dourado do Boqueirão”, e tendo fama de “Maior Centro de Diversões da América do Sul”, era uma imponente e disputada área de recreação, formada por jardins, ringue de patinação, music hall (para o lado da praia) , cassino (ou cabaret, como diziam), bar e restaurante, e um imenso cine -teatro. Do outro lado, a mansão do empresário Júlio Conceição e seu belo parque temático, repleto de orquídeas e centenas de espécies de pássaros, que proporcionavam verdadeiro espetáculo para a população no pôr do sol.

No campo desportivo surgiram novas modalidades, impulsionadas pela facilidade de serem praticadas à beira mar: o futebol, o bola ao cesto, o voleibol, a natação, fazendo com que o remo passasse a frequentar o pano de fundo entre as preferências da geração que crescia.  Além disso, a transferência da sede da Federação Paulista das Sociedades do Remo para São Paulo foi fatal para essa perda de espaço entre possíveis novos adeptos. O fato se deu por exigência dos clubes de remo da capital paulista, tirando a força da modalidade em nossa região.

Esse impacto não feriu apenas o nosso amado Clube Internacional de Regatas, mas todas as associações e entidades localizadas do outro lado do estuário, que deixaram de ser procuradas, perdendo sua hegemonia para outras, situadas em pontos de acesso mais fácil e menos distante.

Em 10 de janeiro de 1934 aconteceu uma sessão extraordinária do Conselho Deliberativo. O então conselheiro Arnaldo de Barros Pires pede a palavra:

– “Senhores, mediante situação penosa pela qual passamos, buscamos incessantemente formas de nos recuperarmos como agremiação desportiva e recreativa. Frente a tantas e extremas dificuldades sem resolução, trago a publico a possibilidade da venda de nosso terreno e demais benfeitorias do clube para pessoa residente em outra cidade, pela quantia de setecentos contos de réis. Além disso, nossa pendência judicial provocada pela herança Malheiros, pode ser solucionada com o pagamento de 10 contos de réis”.

Alguns conselheiros não se conformavam com a venda do patrimônio e dissolução do clube; outro, desejavam a venda e extinção do Gigante de Itapema. Sem consenso, a sessão terminou sem nada estabelecido quanto ao futuro do Clube Internacional de Regatas.

O ano de 1935, sob o comando do presidente Arnaldo de Barros Pires, eleito no ano anterior, seguiu buscando várias formas de reerguer o clube, quase todas infrutíferas.

O fato é que algo precisava ser feito com urgência, pois a crise precipitava nosso amado Vermelhinho para o porão do esquecimento, e seu doloroso fim. Sabia-se que um provável caminho era migrar a sede do Clube Internacional de Regatas para o outro lado do canal, na orla da praia, área em que a população já vinha praticando de forma eufórica atividades desportivas e recreativas.

Tanto que, em disputada reunião de janeiro de 1936, o presidente Arnaldo de Barros Pires entrou decidido a concluir qual atitude deveria ser tomada em relação ao clube. Após debates e embates acalorados, concluiu-se que as extremas dificuldades apontavam para o pior, e decidiu-se que a Diretoria teria total liberdade de ação para a possível venda do patrimônio do clube.

Mas não seria fácil essa venda. As poucas propostas de compra que surgiam eram pífias – muito longe dos 700 contos ofertados em 1934 – e a Diretoria acabaria por declinar. Os empréstimos eram pagos com a contratação de outros empréstimos, até que uma última tentativa junto à Caixa Econômica Federal foi frustrada, deixando o clube quase rumo a lugar nenhum.

Isso mesmo, queridos leitores, quase a lugar nenhum.

Final de 1936. Arnaldo de Barros Pires, que aceitava assumir novamente o cargo de Presidente, tinha como firme propósito transferir as instalações do Clube para o outro lado do estuário, na parte da orla da praia, cujo desejo de aquisição era o mesmo terreno, em frente ao Forte da Barra, local que, antes da ida para Itapema, fora ocupado pela nossa amada associação.

Após extensa e intensa negociação, o saudoso Arnaldo promoveu uma urgente Assembleia para o dia 11 de janeiro de 1937, onde ressaltou mais uma vez a necessidade inadiável do Clube Internacional de Regatas mudar sua sede de local, a fim de sobreviver e voltar a respirar. Após apresentar uma proposta da Companhia Docas de Santos, foi decidido pela aceitação, designando uma comissão encarregada de proceder a alienação do seu terreno no Pae Cará, com todas as instalações. Comissão essa constituída dos associados e autênticos Vermelhinhos Alexandre Chasseraux, Antonio Garcia de Menezes, Araldo Bastos Machado , Arnaldo de Barros Pires, José Guilherme Martins, Theodomiro Freitas do Nascimento, e Dr. Raphael Alca, que concluiu a venda, depositando o valor na agência local do Banco Comércio e Indústria de São Paulo.

Em cinco de abril de 1937 foi assinada a escritura de venda e compra e, exatamente após seis meses, em cinco de outubro, as dependências do Clube Internacional de Regatas entregava suas dependências à Companhia Docas de Santos.

Cumprida a primeira etapa, faltava um detalhe: encontrar um local para a guarda dos barcos, lancha e demais itens do clube, até que nova área fosse comprada.  O presidente da Companhia Docas de Santos, Dr. Ismael Coelho de Souza,, autorizou que todos os pertences do clube fossem guardados na garagem por mais um tempo, até que o Internacional encontrasse o terreno para sua futura sede social.

Com o clube inativo, era urgente a busca por tal área. Enquanto isso não ocorria, a Diretoria do Clube internacional de Regatas, com autorização do Conselho Deliberativo, suspendeu a cobrança das mensalidades dos até então sessenta e quatro autênticos Vermelhinhos, que se mantinham ainda em nosso quadro associativo, além de trinta e oito sócios remidos.

Na visão dos pessimistas, o Clube Internacional de Regatas estava fechado e sem receitas.

Mas, em silêncio, a Diretoria trabalhava ativamente. Decidiu-se aplicar o dinheiro da venda do terreno de Pae Cará em Bônus Rotativos do Estado de São Paulo, investimento muito procurado na época, com juros de 11% ao ano; e uma pequena quantia para pagamento de ocasionais despesas, depositada no Banco do Comércio e Indústria de São Paulo S.A., a juros de 3% ao ano.

Com um memorial descritivo sobre o plano das futuras instalações esportivas, a Diretoria mirava o local que decidira eleger como futura sede do Clube Internacional de Regatas: o terreno na Ponta da Praia, que pertencia à família Zerrener, o mesmo onde o clube esteve instalado de 1900 a 1902, e que atualmente se localiza a sede social de nosso amado clube.

Mas a compra desse terreno na Ponta da Praia não foi resolvida de forma rápida, como todos imaginavam. O que fez se instalar um leve desespero junto aos diretores e sócios remanescentes, enquanto as lentas negociações com os representantes do Espólio Zerrener se arrastavam em longas e cansativas reuniões.

A partir daí, vários caminhos foram buscados para tirar o nosso amado Vermelhinho do limbo em que se encontrava, quase em lugar nenhum.

A primeira tentativa veio em setembro de 1938, durante reunião do Conselho, quando foi apresentada uma proposta de fusão com o Clube de Regatas Saldanha da Gama, incluindo ativo e passivo do mesmo; proposta esta que foi rejeitada por maioria absoluta, dada as informações dispostas pelo Presidente Arnaldo de Barros Pires sobre o andamento das negociações para compra do terreno da Ponta da Praia. Decidiu-se enviar como resposta ao clube coirmão que a proposta no momento não interessava, deixando em aberta para futura volta ao plenário. Desse modo o Saldanha, que nasceu de um grupo de associados do Clube de Regatas Santistas e do Clube Internacional de Regatas, por pouco não se funde ao nosso Vermelhinho.

Em 1939, as notícias de que a negociação está bem encaminhada fez o clube decidir pagar o preço estipulado pelo Espólio Zerrener, que subira de 110 contos para 120 contos de réis. Mas isso não pacificou os embates entre os que queriam a continuação do clube e os que queriam a dissolução da entidade.

Tanto que em 8 de maio de 1939, em uma hercúlea reunião, o conselheiro Murilo Veiga de Oliveira faz uma declaração formal contra a aquisição de qualquer terreno para a instalação do clube:

“- Sejamos sensatos e não levados pelo saudosismo recente: todos sabemos da situação precária de todos os clubes de Santos; todos estes impossibilitados de prosseguir na caminhada. Sou terminantemente contra a reorganização da nossa agremiação. Saibam que irei trabalhar contra essa louca empreitada. E que esse pensamento não é solitário. Na próxima Assembleia trarei todos os associados de mesmo pensamento e convicções”.

Arnaldo decide interpelar o amigo:

“- E qual solução, para conclusão tão extrema?”

Murilo respirou fundo, olhando nos olhos de cada integrante da reunião:

“ – A única solução é a entrega do patrimônio social às casas de caridade de Santos, ou a fusão com qualquer outro clube, uma vez que a situação de todos é insustentável!”.

Arnaldo, assim como muitos presentes, enxergaram uma certa incoerência na sustentação da defesa pelo fim do Internacional.

“- Mas, meu amigo, sinto uma incoerência aí, talvez levado pelo ardor do momento: como você mesmo disse há pouco, se a situação dos clubes é precária, de que valeria a fusão do Internacional de Regatas com outro clube?”

Sem ter mais argumentos para sustentar o caminho da dissolução, Murilo é vencido em sua retórica. Ao final, decidem por maioria absoluta que o Clube Internacional de Regatas vai seguir em frente, e sozinho.

Nessa Jornada de resiliência, o clube sofre um inesperado revés, que obrigou a paralisação das negociações com o Espólio Zerrener: o terreno da Ponta da Praia foi desapropriado para a construção do Entreposto de Pesca.

O desespero se abateu na Diretoria e algumas tentativas urgentes foram colocadas em prática, algo próprio dos plano contingente.

Arnaldo de Barros Pires iniciou tratativas para a compra ou locação da Fortaleza da Barra Grande, desistindo rapidamente ao descobrir que o imóvel estava tombado, não sendo permitida nenhuma reforma, fosse interna ou externa.

Sem desistir, a Diretoria iniciou negociações para a compra da Ilha de Urubuqueçaba, direto com o proprietário José Avelino da Silva, conceituado integrante da sociedade paulista, além de fazendeiro e investidor.

Inicialmente José Avelino pediu cento e vinte contos de réis, o que pareceu justo aos olhos da Diretoria do Vermelhinho. Imediatamente buscou-se parecer de engenheiros sobre a viabilidade de construção e uma sede na ilha, sendo considerada viável tal construção. Havia apenas um problema a ser resolvido: a ligação da ilha com a praia, e que foi equacionado com a apresentação de um orçamento de terraplanagem da Empresa Barros, no valor de quarenta contos de réis. Mesmo todo o trâmite burocrático, sendo Patrimônio da União, seria facilmente contornado.

Tudo levantado e prestes a assinar o contrato de venda e compra, a Diretoria recebeu a notícia de que José Avelino da Silva, percebendo  real interesse do clube pela aquisição, elevou o valor da ilha para cento e cinquenta contos de réis.

Tal fato fez Arnaldo e a Diretoria esfriar as negociações pela aquisição da Ilha de Urubuqueçaba. Ainda mais ao saber, de fonte segura, que o decreto de desapropriação do terreno da Ponta da Praia, pertencente ao Espólio Zerrener, iria ser revogado.

Tal informação não vinha de qualquer fonte, mas do Comandante Hugo de Cunha Machado, velho amigo do Clube Internacional de Regatas. Segundo ele, tal desistência ocorreu por conta do local ser de difícil ancoradouro para os barcos pesqueiros.

Tal informação fez com que a Diretoria desistisse de vez da compra da Ilha de Urubuqueçaba, suspendendo todos os estudos em andamento.

Apesar da alegria que tomava novamente posse dos autênticos Vermelhinhos, outro fato surgiu para atrapalhar os planos tão sonhados de construção da sede: o terreno onde estava situado o Clube de Regatas Santista seria desapropriado para a construção da futura Base Aérea. Em troca, foi prometido pelo Governo de Adhemar de Barros justamente o terreno pretendido pelo Internacional.

Com a notícia, esmorecia a luz que iluminava o sonho da sede naquele local. Mas o saudoso Comandante Hugo tranquiliza a todos, anunciando que esse negócio com o Clube de Regatas Santista seria uma espécie de “operação casada”: o Regatas Santista receberia todo o terreno e venderia metade para o Clube Internacional de Regatas.

O Tempo foi passando, chegamos em 1942.

Ano em que o presidente Arnaldo de Barros Pires efetuou o pagamento de cento e vinte contos de réis ao Clube de Regatas Santista pela compra do terreno, em que hoje está localizada a sede de nosso amado clube.

A dimensão total do terreno era de 172 metros de frente para o mar e 100 metros da frente aos fundos, divisa com a Rua Rei Alberto I. Para o Clube Internacional de Regatas coube 86 metros de frente para o mar, na parte esquerda, tendo como limite o Clube de Pesca de Santos (atual Museu de Pesca), e ao Clube de Regatas Santista cabia os 86 metros restantes, à direita, tendo como limite o Clube de Regatas Vasco da Gama. Além disso, os dois clubes acordaram em reservar uma faixa de terreno de 14 metros para a construção da Rua Francisco Hayden.

Tempos depois, Arnaldo de Barros Pires confidenciou para papai que o proquê da sua escolha pela aquela metade:

“- Meu amigo, a parte que nos coube tem a possibilidade de expansão pela compra da parte de terreno localizada nos fundos do Instituto de Pesca e as adjacentes” – o que seria realmente realizado anos depois.

No terreno do Internacional havia alguns empecilhos: a linha dos bondes 04 e 13 que faziam no seu final um balão de retorno dentro do terreno (onde hoje se situa a escada da piscina social), para então retornar à linha normal; e três casas de madeira, onde viviam posseiros. Tudo simples e resolvido: o balão teve um novo traçado, e o clube fez um acerto, de forma amigável, com os posseiros, que se retiraram no terreno.

Após seis anos fechado, sem sede, com poucos sócios que nem mais contribuíam com mensalidade, e velado apenas pelos ideais daqueles que resistiram às intempéries, o Gigante de Itapema ressurgiu tal qual Fênix, se incrustando na topografia da Ponta da Praia, como se dela fosse um acidente natural.

Aqui termino essa narrativa, ciente de que, se outros rumos nosso amado clube tivesse tomado, tais palavras aqui escritas nunca teriam acontecido.

E tenham certeza: nem a minha própria existência.

Saudações Vermelhinhas!